8 de fevereiro de 1964 - A GRES Delírios de Tibira desfilou com o enredo 'há de se ter medo, mas há de se ter coragem' que falava sobre os monstros que habitam a mente humana em tempos de crise. O desfile trazia alegorias impressionantes e assustadoras, que não agradaram todos os jurados. Com alegações de mal gosto e feiura por parte da maioria, mas recebendo algumas notas altas dos que julgaram que havia criatividade, e que a Escola estava a frente de seu tempo. Da mesma forma o desfile foi repudiado pela elite conservadora com comentários como "o carnaval deve ser bonito, e não político", mas no fim o desfile comoveu o público presente que cantou e se emocionou com o samba.
"Às vezes eu sinto medo, não vou negar
Parece que a vida me quer desafiar
Nas voltas do mundo, eu saberei navegar
Pois nunca ando sozinho, e sei quem vai me guiar
Medo, medo, vá embora
A coragem é quem manda agora
O povo do samba tem fé, Tibira tem samba no pé"
Podia ser real, mas as imagens foram geradas por um robô. Já o texto é fruto da colaboração de Victor Curi e Marlon Peter e integra o projeto que cria ficções para o passado cuíer.
O artista Victor Curi @victorcuri usa plataformas de inteligência artificial para gerar imagens que emulam fotografias antigas e a partir delas imaginar um passado diferente para comunidade LGBTQIAP+. Assim, recria narrativas por vezes otimistas (e, portanto, um tanto fora da realidade); e em outras, situações absolutamente verossímeis. Se estas ferramentas representam uma possibilidade de democratização do desenvolvimento de imagens de ficção, outros universos para o passado LGBTQIAP+ passam a existir e nos fazem questionar. Como poderiam ter sido as vivências destes grupos na utopia da folia cuíer?
Entre o imaginário que criou para esse projeto, Victor propõe montações fantásticas para drags contemporâneas como a icônica @organzza no Gala Gay do Rio de Janeiro de 1984 - ano que nem Vinícius que dá vida à Organzza era nascido. Mas também para personagens imaginárias como Gabi La Boom, que aparece em montação que lembra um personagem do programa de TV da Família Dinossauro, coisa que teria sido impossível de ser feita naquela época por uma drag brasileira. O ensaio das drags na Uruguaiana mostra maravilhosos corpos pretas no meio do Centro do Rio de Janeiro ainda no século passado, com uma riqueza de detalhes nas maquiagens e figurinos babadeiros. As imagens impressionam, e combinadas com os textos que as acompanham, simulam uma realidade que deixou muita gente confusa quando foram publicadas pela primeira vez.
Além das fotos, as datas e locais parecem reais, mas misturam fatos que não fariam sentido: era simplesmente impossível existir um Rancho carnavalesco de bicha e sapatão na década de 20 no Brasil. Os Ranchos eram associações carnavalescas típicas do Rio de Janeiro que duraram até meados do século XX, até serem totalmente substituídos pelos blocos. Nesse universo encantador, Victor cria sua própria escola de samba e desenvolve os enredos: as carnavalesques se aquilombavam no maravilhoso GRES Delírios de Tibira, uma escola de samba surgida no final dos anos 30 e que tem a diversidade - e uma política afrontosa na sua essência. Aqui, pessoas trans foram madrinhas de bateria e presidentes da escola, e os samba-enredo homenagearam utopias delirantemente possíveis. O próprio nome Tibira no grupo linguístico tupi-guarani designa aqueles de comportamentos sodomitas, e faz referência ao primeiro caso de lgbtifobia do país, o indígena tupinambá assassinado no Maranhão do século XVII.
Corpos não hegemônicos ocupando as ruas da cidade, carros alegóricos fantásticos desfilando na avenida evocam presença cuíer quase onírica, um delírio da folia carnavalesca que não foi.
Victor provoca o imaginário com um resgate à uma memória LGBTQIAP+ que nunca existiu. Um passado que é constantemente negligenciado, e quando não foi literalmente apagado, é lembrado por dores e lutas constantes. Mas o artista busca estabelecer pontes com a nossa percepção da história, e que permitam que a gente se enxergue lá, fazendo imaginar por um segundo que o passado não foi tão ruim. Mas como nesse universo não há nenhum compromisso formal com a realidade, a imaginação flui em liberdade conforme o programa gera imagens que o inspiram a especular cada vez mais.
Victor usou a plataforma do Midjourney para a geração das imagens e por vezes o ChatGPT, como para ajudar a criar as letras de samba-enredo da GRES Delírios de Tibira que completam a narrativa. Assim dá vida a diferentes possibilidades de imaginar outras cidades queer.
Na elaboração desse universo todo, Victor contou com a colaboração do historiador e arquivista Diego Rainho @diegosrainho , de Marlon Peter @peterkino que tem proximidade com escolas de samba cariocas e com a artista Priscilla Menezes @lotahille que entre outras coisas, arrasa na escrita.
// Victor Curi tem graduação em ciências naturais, mas foi com a fotografia que se encantou. Depois da imersão no mercado criativo, hoje trabalha para construir narrativas imagéticas ou não dos universos LGBTQIAP+ do Rio de Janeiro. Acredita na fotografia também como poderosa representação de pessoas e espaços marginalizados, e participa da constante construção – desconstrução – reconstrução destes através da elaboração de memórias a partir da perspectiva de um vivente desses universos. Vive no Rio de Janeiro.
Confira mais de seu trabalho aqui
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